quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Pela imediata responsabilização da TV Globo no caso BBB



Dois fatos muito graves ocorreram esta semana envolvendo o Big Brother Brasil. O primeiro foi com a participante Monique, que pode ter sido vítima de crime praticado por outro integrante do programa. O segundo foi a absurda atitude da TV Globo frente ao ocorrido. Em relação ao primeiro, cabe à polícia apurar e à justiça julgar, buscando ouvir os envolvidos, garantindo que eles estejam livres de pressões e constrangimentos. Já em relação ao segundo, é preciso denunciar a emissora e os anunciantes que sustentam o programa, e cobrar as autoridades do setor.

Frente a indícios de um possível abuso sexual contra uma mulher participante de um de seus principais programas, a Globo, além de não impedir a violência no momento em que ela poderia estar ocorrendo, tentou escamotear o fato, depois buscou tirar de circulação as imagens e finalmente assumiu o ocorrido sem nomeá-lo. Na edição de domingo do programa, após todas as denúncias que aconteciam pela internet, ela transformou a suspeita de um crime em uma cena "de amor". O espírito da coisa foi resumido pelo próprio apresentador Pedro Bial: “o espetáculo tem que continuar”. A atitude é inaceitável para uma emissora que é concessionária pública há 46 anos e representa uma agressão contra toda a sociedade brasileira.

Pelas imagens publicadas, não é possível dizer a extensão da ação e saber se houve estupro. A apuração é fundamental, mas o mais importante é o que o episódio evidencia. Em primeiro lugar, a naturalização da violência contra as mulheres, que revela mais uma vez a profundidade da cultura machista no país. No debate público, foram inúmeras as tentativas de atribuir à possível vítima a responsabilidade pela agressão, num discurso ainda inacreditavelmente frequente. O próprio diretor do programa, Boninho, negou publicamente que as imagens apontassem para qualquer problema.

Em segundo lugar, o episódio revela o ponto a que pode chegar uma emissora em nome de seus interesses comerciais. A Globo fatura bilhões de reais anualmente pela exploração de uma concessão pública, e mostra, com esse episódio, a disposição de explorá-la sem qualquer limite nem nenhum cuidado com a dignidade da pessoa humana. O próprio formato do programa se alimenta da exploração dos desejos e das cizânias provocadas entre os participantes e busca explorar situações limite para conquistar mais audiência. Assim, o que aconteceu não é estranho ao formato do programa; ao contrário, é exatamente consequência dele.

Em terceiro lugar, fica evidente a ausência de mecanismos de regulação democrática capazes de apurar e providenciar ações imediatas para lidar com as infrações cometidas pelas emissoras. Como já vem sendo apontado há anos pelas organizações que atuam no setor, não há hoje regras claras que definam a responsabilidade das emissoras em casos como esse, nem tampouco instrumentos de monitoramento e aplicação dessas regras, como um Conselho Nacional de Comunicação ou órgãos reguladores.

Uma das poucas regras existentes para proteger os direitos de crianças e adolescentes – a classificação indicativa – está sendo questionada no STF, inclusive pela Globo. A emissora, que costuma tratar qualquer forma de regulação democrática como censura, é justamente quem agora pratica a censura privada para esconder sua irresponsabilidade. É lamentável que precise haver um fato como esse para que o debate sobre regulação possa ser feito publicamente.

Frente ao ocorrido, exigimos que as Organizações Globo e a direção do BBB sejam responsabilizados, entre outros fatos, por:
• Ocultar um fato que pode constituir crime;
• Prejudicar a integridade da vítima e enviar para o país uma mensagem de permissividade diante de uma suspeita de estupro de uma pessoa vulnerável;

• Atrapalhar as investigações de um suposto crime;
• Ocultar da vítima as informações sobre os fatos que teriam se passado com ela quando estava supostamente desacordada.


É preciso garantir, no mínimo, multas vultuosas e um direito de resposta coletivo para as mulheres, que mais uma vez tiveram sua dignidade atingida nacionalmente pela ação e omissão da maior emissora de TV brasileira.
Os anunciantes do BBB – OMO (Unilever), Niely Gold, Devassa (Schincariol), Guaraná Antártica e Fusion (Ambev) e FIAT – também devem ser entendidos como co-responsáveis, e a sociedade deve cobrar que retirem seus anúncios do programa ou boicotá-los. Suas marcas estão ligadas a um reality show que, para além de toda a crítica sobre os valores que propaga à sociedade – da banalização do sexo e do consumo de álcool à mercantilização dos corpos – , permite a violação de direitos fundamentais.

Finalmente, é fundamental que o Ministério das Comunicações coloque em discussão imediatamente propostas para um novo marco regulatório das comunicações, com mecanismos que contemplem órgãos reguladores democráticos capazes de atuar sobre essas e outras questões.

Este é mais um caso cujas investigações não podem se restringir à esfera privada e à conduta do participante suspeito. Exigimos que o Poder Executivo cumpra seu papel de fiscal das concessionárias de radiodifusão e não trate o episódio com a mesma "naturalidade" dada pela TV Globo. Esperamos também que o Ministério Público Federal se coloque ao lado da defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana e responsabilize a emissora pela forma como agiu diante de uma questão tão séria como a violência sexual contra as mulheres.

Brasil, 18 de janeiro de 2012

  • FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
  • Rede Mulher e Mídia
  • Articulação de Mulheres Brasileiras
  • Campanha pela Ética na TV
  • Ciranda
  • Coletivo Feminino Plural
  • Observatório da Mulher
  • Associação Mulheres na Comunicação - Goiânia
  • COMULHER Comunicação Mulher
  • HUMANITAS - Diretos Humanos e Cidadania
  • Marcha Mundial das Mulheres
  • Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
  • SOF – Sempreviva Organização Feminista
  • SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia

Manifesto aberto a adesões de entidades e redes. Para aderir, escreva para imprensa@fndc.org.br

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A Constituição é letra morta?


Publicado no Blog Tijolaço em 17/1/2012

Ninguém tem nada a ver com o que fazem pessoas maiores fazem em sua intimidade, de forma consentida, se isso não envolve violência.

Niguém tem nada a ver com o direito de pessoas expressarem opinião ou criação artística, independente de se considerar de bom ou mau gosto.

Outra coisa, bem diferente, é utilizar-se de concessões do poder público, como são os canais de televisão, sobretudo os abertos, para promover, induzir e explorar, com objetivo de lucro, atentados à dignidade da pessoa humana.

Não cabe qualquer discussão de natureza moral sobre a índole e o comportamento dos participantes. Isso deve ser tratado na esfera penal e queira Deus que, 30 anos depois, já se tenha superado a visão que vimos, os mais velhos, acontecer em casos como o de Raul “Doca” Street, onde o comportamento da vítima e não o ato criminoso ocupava o centro das discussões.

O que está em jogo, aqui, é o uso de um meio público dedifusão, cujo uso é regido pela Constituição:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;(…)

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


O que dois jovens, embriagados, possam ou não ter feito no “BBB” é infinitamente menos graves do que o fato de por razões empresariais, pessoas sóbrias e responsáveis pela administração de uma concessão pública fazem ali.

Não adianta dizer que um participante foi expulso por transgredir o regulamento do programa. Pois se o programa consiste em explorar a curiosidade pública sobre comportamentos-limite, então a transgressão destes limites é um risco assumido deliberadamente.

Assumido em razão de lucro pecuniário: só as cotas de patrocínio rendem à Globo mais de R$ 100 milhões. Com a exploração dos intervalos comerciais, pay-per-view, merchandising, este valor certamente se multiplica algumas vezes.

Será que um concessionário de linhas de ônibus teria o direito de criar “atrações” deste tipo aos passageiros, para lucrar?

Intependente da responsabilização daquele rapaz, que depende de prova, há algo evidente: a emissora assumiu o risco, ao promover a embriaguez, a exploração da sexualidade, o oferecimento de “quartos” para manifestação desta sexualidade, a atitude consciente de vulnerar seus participantes a atos não consentidos. É irrelevante a ausência de reação da jovem, ainda que não por embriaguez. Se a emissora provocou, por todos os meios e circunstâncias, a possibilidade de sexo não consentido, é dela a responsabilidade pelo que se passou, porque não adiante dizer que aquilo deveria parar “no limite da responsabilidade”.

Todos os que estão envolvidos, por farta remuneração, neste episódio – a começar pelo abjeto biógrafo de Roberto Marinho, que empresta o nome do jornalismo à mais vil exploração do ser humano – não podem fugir de suas responsabilidades.

Não basta que, num gesto de cinismo hipócrita, o sr. Pedro Bial venha dizer que o participante está eliminado por “infringir as regras do programa”. Se houve um delito, não é a Globo o tribunal que o julga. Não é uma transgressão contratual, é penal.

Que, além da responsabilização de seu autor, clama pela responsabilização de quem, deliberadamente, produziu todas as cirncunstâncias e meios para isso.

E que não venham a D. Judith Brito e a Abert falar em censura ou ataques à liberdade de expressão.

E depois não se reclame de que as demais emissoras façam o mesmo.

O cumprimento da Constituição é dever de todos os cidadãos e muito maior é o dever do Estado em zelar para que naquilo que é área pública concedida isso seja observado.

Do contrário, revoquemos a Constituição, as leis, a ideia de direito da mulher sobre seu corpo, das pessoas em geral quanto à sua intimidade e o conceito social de liberdade.

A Globo sentiu que está numa “fria” e vai fazer o que puder para reduzir o caso a um problema individual do rapaz e da moça envolvidos. Nem toca no assunto.

Tudo o que ela montou, induziu, provocou para lucrar não tem nada a ver com o episódio. Não é a custa de carícias íntimas, exposição física, exploração da sensualidade e favorecimento ao sexo público que ela ganha montanhas de dinheiro.

Como diz o “ministro” Pedro Bial ao emitir a “sentença” global ( veja o vídeo) : o espetáculo tem que continuar. E é o que acontecerá se nossas instituições se acovardarem diante das responsabilidades de quem promove o espetáculo.

Atirar só Daniel aos leões será o máximo da covardia para a inteligência e a justiça nestes país..

Churrascão no Vestíbulo do Inferno



Publicado por Eduardo Guimarães no Blog da Cidadania em 15/01/12



O “Vestíbulo do Inferno” aparece na primeira parte da Divina Comédia, obra monumental do escritor, poeta e político italiano Dante Aligheri (Florença, 1265 — Ravenna, 1321). As outras duas partes são “Purgatório” e “Paraíso”.

Divina Comédia versa sobre odisséia do Poeta no inferno conceitual da Idade Média. O périplo de Dante Aligheri pelos nove círculos infernais é guiado pelo poeta romano Virgílio, que vivera quase dois mil anos antes.

Tive uma edição italiana do Inferno de Dante de capa dura (revestida de couro entalhado a mão), primorosamente ilustrada por Gustave Doré. Presente da mãe. Durante anos, vez após outra, degustava cada sílaba do verso do Poeta e cada traço da imaginação do artista.

Lembrei-me da obra medieval ao participar do “churrascão” que ONGs e movimentos sociais promoveram ontem na esquina da rua Helvétia com a alameda Dino Bueno, no olho do furacão, na Cracolândia de São Paulo.

O “Vestíbulo” é para onde vão as almas dos que não são aceitos no céu, mas que não merecem ir para o inferno. Exatamente como aqueles farrapos humanos prisioneiros de seus infernos particulares aos quais se pretendeu mostrar que nem todos os esqueceram.

Mas não foi só aos condenados que a iniciativa se deveu. Pretendeu-se mostrar ao governo do Estado (policial) de São Paulo e às suas forças de repressão que há quem não aceite os métodos que estão empregando contra aqueles que continuam sendo seres humanos.

Quem esteve lá sabe o que viu e ouviu. E eu sei. Os raros relatos de prisioneiros do crack desconfiados de que aquilo que ali acontecia não poderia ser em seu benefício – pois nada jamais é – tratam de supostos crimes cometidos por seus algozes.

Relatam que apanham até quando estão dormindo. Um deles disse que a polícia espancou alguém de seu grupo, jogou a pessoa no meio da rua e atropelou. E quando perguntados sobre o que gostariam de dizer à sociedade, dizem que apenas gostariam de parar de apanhar.

A presença da polícia, pois, era ameaçadoramente ostensiva. Entendo que até deveria estar lá para proteger os manifestantes, pessoas de classe média, a grande maioria jovem. Mas se o objetivo fosse proteger não deveria ter ficado tão longe – a uns cem metros de distância.

Então percebo que do teto de uma das bases móveis da polícia estão filmando tudo. Decido ir até lá perguntar a razão.

– Boa tarde, policial.

– O que você quer?

– O senhor poderia me informar a razão da filmagem?

– Não posso. Só o capitão (…).

– Onde ele está?

– Atrás do furgão.

Contorno a base móvel da PM.

– O sr. é o Capitão (…)?

– Eu mesmo.

– Gostaria de saber por que os senhores estão filmando o ato público.

– Em primeiro lugar, quem é você?

– Sou do Blog da Cidadania. Vim cobrir a manifestação.

– Não podemos falar.

– Por que não?

– Ordens.

– De quem?

– Não posso dar informações.

Distancio-me alguns metros do furgão e, naquele momento, sucede uma cena no mínimo curiosa: enquanto fotografo o equipamento de filmagem e o aparato policial em seu entorno, sou fotografado. Travei uma guerra de câmeras com a PM.

A atitude pouco amistosa dos policiais, o interesse inexistente ou proibido de dar satisfações à sociedade sobre seus métodos de atuação, tudo isso deixa ver uma paranóia contra não se sabe o que. Era como se temessem um atentado terrorista.

A quem filmavam? Será que alguém iria traficar drogas em um local que tinha tantas câmeras e tanta polícia? Para que filmariam aqueles farrapos humanos que tão bem conhecem, pois de lá não saem?

Quem foi filmado, portanto, foram aqueles que levaram alento e comida a esfaimados. Mas por que? Que crime poderíamos cometer ao levar um sopro de humanidade ao inferno?

Refleti, naquele momento, que o Estado está completamente divorciado da sociedade, em São Paulo. O cidadão que diverge das autoridades locais é visto como inimigo. Por isso a polícia paulista é tão grosseira, autoritária e violenta.

As constatações deprimentes que aquela descida ao inferno causou, porém, não parariam por ali. Os zumbis do crack e os visitantes solidários pouco se misturavam. Os receptivos eram moradores de rua, mas não necessariamente usuários daquele veneno.

Alguns usuários de fato atravessavam a multidão dando encontrões de raspão, aparentemente contrariados. Fiquei imaginando se não temiam que tudo aquilo lhes fosse cobrado pelos opressores quando fôssemos embora.

Aqueles filhos de Deus rescendendo a morte, a excrementos, a álcool, com bocas desdentadas, feridas espalhadas e olhares mortiços… Como ir embora e deixá-los lá? Como sair dali sem ter feito nada? E o que é mais: como purgar a culpa por fazê-lo?

Moças e rapazes tentavam puxar canções, instilar alguma alegria no entorno – como se fosse possível –, mas não repercutia. Não havia espaço para outro sentimento além da perplexidade. E a separação tácita entre visitantes e anfitriões, mesmo estando misturados, tornava tudo pior.

Após resistir por cerca de uma hora, não suportei mais. Despedi-me de amigos que lá encontrei e saí em fuga daquele inferno. E sem olhar para trás.

Perdi a noção de tempo e espaço. Caminhei debaixo de chuva por quilômetros. Só então parei um táxi. Chegando em casa, tomei uma dose de cachaça. E mais outra. Lá pela terceira percebi o que estivera fazendo: tentara, sem sucesso, redimir-me da culpa.